Na calçada do Antonio’s passam meninas e meninos, e quase todos me cumprimentam. É pela novela da televisão, mas é também porque estou sempre ali e eles se acostumaram. A razão principal está no espírito de independência da criançada. Sou o primeiro adulto que eles conheceram sem ser por intermédio dos pais. Quando passam com os pais, justamente, cumprimentam-me com ar vitorioso:

— Oi, Carlinhos!

A mãe e o pai, encabulados, não ousam fazer o mesmo; sorriem discretamente, espantados e vaidosos, e passam.

Quando os meus fãs são mocinhas, não há nada a estranhar. Mas, e a menininha de quatro anos? Lá vem ela com a babá, vestindo um saiote, com a calcinha aparecendo. Ao ver-me na varanda, larga a mão da babá, ergue a mãozinha direita e grita: “Oi, Carlinhos”! Uma outra, que está pelos 10 anos, também dizia: “Oi, Carlinhos”. Finalmente apareceu com um livro meu; queria autógrafo; ganhou. E ei-la agora mais solene: “Oi, Carlos”!

Dizer que são minhas fãs, no sentido comum, diminui o significado dessa espontaneidade. O fato é que quando me veem com Chico Buarque ou com Cláudio Marzo elas ficam mudas, paralisadas numa espécie de estupor que se transformaria em desatinada felicidade se Chico, por exemplo, começasse a cantar. Sou mesmo é aquilo que também já observei: o adulto anônimo — o mundo, algo que escapa ao controle do lar e faz da criança uma pessoa. (A comunicação partiu de meninos e meninas; nisso não me cabe mérito.)

Enquanto meditava sobre isso, só pelo prazer de saborear pensamentos, lembrei-me de três casos nos quais as crianças de hoje demonstram uma inteligência desconcertante.

No primeiro caso temos um garoto cujo pai, exercendo o jornalismo, sacrificou um sobrenome, de modo que hoje só é conhecido pelo sobrenome materno. O filho de seis anos foi passar férias com a tia e, diante de uma máquina de escrever, datilografou o próprio nome. Disse a tia:

— Mas o que é isso? Você não usa o sobrenome do seu pai?

— Não. 

— Por quê? 

— Porque sou um bastardo!

A) Tem seis anos e já escreve o próprio nome na máquina de escrever. B) Provocado de modo a ficar em dúvida sobre sua paternidade, em vez de se mostrar aflito, respondeu à provocação com rapidez estonteante. C) Não foi bastardo o que ele disse, e sim aquilo que vocês estão pensando...

No segundo caso temos o filho, de quatro anos, e seu pai. O pai chegou em casa com um presente para o filho: um aparelho de controle remoto para televisão. Mandou o filho sentar diante da televisão ligada e, pedindo-lhe que não olhasse para trás, começou a mudar de canal. Quando o filho olhava para trás, escondia o controle atrás das costas. Finalmente o menino não se conteve:

— Eu quero ver o que é que você está escondendo aí.

O pai mostrou. Filho: 

— Ora, papai, controle remoto? Sem essa!

A) Ele estava esperando, com nostalgia, a mágica no sentido circense da palavra. A mágica, e não a máquina — que esta lhe é familiar e, até certo ponto, lhe parece tola. B) Ele não disse “sem essa”, não. Usou um verbo fortíssimo que nós, adultos, ainda não temos coragem de pronunciar.

O terceiro caso (mais um para a coleção de Pedro Bloch!) é que Luisinho foi convidado a entrar na próxima novela da TV Globo, na qual faria o papel de filho de Francisco Cuoco. O pai consentiu, mas a mão disse não. Um amigo de Luisinho, sabendo da história, procurou a própria mãe e sugeriu:

— Já que a mãe dele não deixou ele entrar, eu quero ir para a novela.

A mãe argumentou:

— Luisinho é louro, e por isso poderia fazer o papel de filho de Francisco Cuoco. Você, sendo moreno, ninguém acreditaria.

— Corta essa, mãe. Eu fico sendo filho do Francisco Cuoco, ele louro e eu moreno. No final, descobrem quem é o meu verdadeiro pai e a novela acaba...

São esses os pequenos monstros que vão tomar conta do mundo daqui a 15 anos. Como são diferentes das crianças que fomos! E como são infinitamente melhores!

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