Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 18/11/1970.

O primeiro sol do verão ilumina o mar. Os adolescentes ocupam o areal. Um vento ranzinza, gélido, disputa com o calor a penugem dos jovens braços. Num banco, na calçada, há um homem amargurado.

Sob a claridade de novembro, vestido à maneira de um andarilho inveterado, o homem avalia os corpos que tem diante dos olhos e os pensamentos que correm atrás deles. Por fora é tudo claro; por dentro, tudo escuro.

— Procura-se uma literatura secreta, um enigma... (Freme no ar azul a clamorosa ausência de gaivotas).

As meninas crescem. Os seios eclodem macios. Os pensamentos se atropelam na cabeça do homem, sacudindo-o em soluços sorrisos alucinados:

— Estupidez... Tirania... Haverá uma União Soviética em 1984? Estupidez.... Nada pode ser mais idiota do que um intelectual moscovita discutindo a liberdade de opinião em algum país latino-americano.... As prisões abertas, o livre debate.... Ah! Estupidez...

Esse homem vinha de uma discussão dramática. Um homem vivido, pai de homens feitos, queixava-se assim:

— Nossa geração não conhece o ódio. A geração de brasileiros a que pertencemos não conhece o ódio. Sabemos que tal palavra corresponde a um sentimento, mas ignoramos o sentimento correspondente. É como se tivéssemos um filtro contra o rancor. Com o tempo, a coisa passa; não fomos feitos para saborear o gosto do sangue. Mas é preciso legar essa incapacidade, essa pobreza que enriquece, aos nossos filhos e netos. Precisamos defender a cordialidade, agora que há tanta gente interessada em esmagá-la...

Foi essa a discussão, ocorrida na véspera. E agora aquele homem estava sentado num banco, diante do mar, amargurado, perplexo, entregue por fora ao gosto da vida — a visão da juventude elástica, do corpo humano que amadurece ao sol — e por dentro atormentado pelos fatos recentes. Era um escritor e devia escrever. Mas escrever o quê? Fazer a apologia da inocência corporal? Ensinar as meninas de maiô as riquezas que trazem em si mesmas? Gritar contra o tempo que passa?

— Não — dizia ele. — Não e não. Devo escrever sobre a condenação de Amalrik aos trabalhos forçados. Na fórmula clássica deste século que teme antes de tudo a consciência individual: — um escritor escrevendo sobre um escritor que escreve sobre um escritor. Os chefes de Estado em Notre-Dame apenas demonstraram que uma nova classe, de número reduzidíssimo, está disposta a assumir o controle de toda a humanidade. Acabaram-se os indivíduos! ou, se não acabaram, é preciso massacrá-los. Haverá uma União Soviética em 1984? E haverá alguém lá dentro, alguma pessoa? Ou seremos todos iguais? Qual é a vantagem de ser democrático o sistema, e não comunista, se as pessoas são presas da mesma forma — apanhadas no meio da rua e desaparecidas, isto pelo fato de nada terem feito? Em nome de que monstruosa hipocrisia estou eu aqui lamentando a sorte de um intelectual soviético?

Fremia no ar azul a clamorosa ausência das gaivotas. As meninas exibiam corpos contrafeitos, corpos em formação. O pobre homem estava amargurado; andava bebendo muito, o pobre homem; alheio ao ódio era, no entanto, um mestre da indignação. Estava indignado, não há dúvida, mas por quê? Por que os artistas de Moscou, quando se recusam a admitir o que lhes parece errado, são carimbados como doidos e trancados numa clínica psiquiátrica? Que é que tem a ver um latino-americano com semelhante inferno?

Ah, as meninas... A sensualidade... O mar cinzento.... Do lado de fora dos olhos era tudo luminosidade, erotismo, saúde, porém do lado de dentro estava tudo escuro.

jose-carlos-oliveira