Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 5/01/1973.

Um rapaz de 20 anos incompletos, que pretende tornar-se escritor profissional (poeta), me faz algumas perguntas embaraçosas. Dou-lhe então um conselho surrealista: “Se você quer ser poeta, tem que dormir bastante. Indico ademais um livro: Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro, de Gilberto Mendonça Teles, publicado pela Editora Vozes: ali estão os manifestos da rebeldia.

Tem esse rapaz uma queixa: de repente, ficou vazio. Então lhe contei que eu também, aos 20 anos, me vi completamente vazio. Eu, jovem escritor, não trazia nenhuma palavra comigo. Então passei alguns anos escutando a voz do meu silêncio, enquanto namorava a sorte dos grandes desesperados. Rimbaud, Baudelaire, Poe, os destinos trágicos. Ferido em minha vaidade, optei pelo orgulho. Diziam-me o que muito me torturava: “És um estilista à procura de um tema”. Em suma, eu tinha jeito para a coisa: só não tinha a própria coisa. Vi meus companheiros de geração passando à minha frente, prosadores e poetas: Mário Faustino, Ferreira Gullar, Fernando Fortes, Leo Vítor, Oliveira Bastos e os outros todos do glorioso “Suplemento dominical” do JB, aquele do Reinaldo Jardim, que é o homem mais numeroso que conheço. E eu, nada. Até Walmir Ayala apareceu e tomou seu lugar: e eu, parado. Publicava contos e reflexões, eu, mas não guardava nada: sabia que não era aquilo o que me caberia dizer. Lúcio Cardoso, já reconhecido entre os grandes, me aborrecia carinhosamente: “Você é escritor de um só livro”.

Pouco a pouco fui compreendendo: eu simplesmente não era um escritor. Sabia muitíssimo bem onde é que estava a literatura, assim como Chico Buarque colhe seus sambas na árvore: sabia onde é que estava o meu barulho, porém me obstinava na procura do meu silêncio. Pertenço à raça daqueles que não podem admitir a indiferença das constelações e, portanto, o meu problema era de salvação: não um caso literário, mas religioso. Até hoje ignoro como é que certas pessoas conseguem ser felizes.

Fui aos existencialistas e aprendi, lendo Nietzsche, a enormidade da solidão dos homens. Minha humilhação poderia ser dita assim: eu estava abaixo do bem e do mal. Todos os meus sonhos de glória se desvaneceram; renunciei à Academia e ao Prêmio Nobel... E gostosamente me entreguei à frivolidade. Hoje, se sou um homem gasto, posso apregoar que me gastei até a última gota, não vai sobrar nada para vocês jogarem no túmulo.

Eis como me quero e como me faço e refaço: um drama. Assim, não posso dar conselhos a ninguém, pois só conheço aquilo que se passa na minha alma, e me sinto singular como o Marquês de Sade. Estudei minuciosamente o funcionamento de meu cérebro, incluindo os páramos augustos da loucura, e penso que era justamente essa a minha vocação, era esse o meu silêncio. Neste mundo enfermo cabe ao escritor a dura tarefa de exorcizar o demônio que traz em si mesmo.

Eis, enfim, as palavras que não sei se deveria dizer ao jovem escritor...

jose-carlos-oliveira