Fonte: Caderno B, coluna "O homem e a fábula", Jornal do Brasil, de 15/11/1964.

Escrevo numa Olivetti Lexicon 80, pesada, cujas letras são redondas. Esta não é a minha máquina. A minha é uma Olivetti Lettera 32, com teclado europeu; não tem til e lhe faltam outros acentos; para dominá-la, tenho que esquecer o método a-s-d-f-g. Minha máquina é pequena e leve, razão pela qual, quando estou inspirado, tenho medo de quebrá-la. Comprei-a em Paris e no início estranhei a disposição das teclas, escrevi páginas confusas, sem calor, quase cabalísticas. Só se pode escrever direito quando se esquece que a máquina é um objeto, quando a máquina se torna um prolongamento dos nossos dedos.

Quando entrei para a escola, aos seis anos de idade, eu era canhoto e analfabeto. A professora não queria que eu escrevesse com a mão esquerda. Mas, quando ela estava distraída, eu pegava o lápis com a mão esquerda e escrevia: bê-a-bá. Ivo viu a uva. Um dia, a professora me pegou praticando aquele crime e deu-me uma bofetada. Ela se chamava Dona Clotilde e era seca, ossuda. Obrigou-me a escrever com a mão direita. Minha cabeça ficou partida ao meio.

Todo o meu ser se concentrava na mão esquerda, mas o mundo hostil me obrigava a desviar essa energia para a mão direita. Resultado: fiquei analfabeto com as duas mãos. Ninguém entendia a minha letra. Ganhava 10 em aritmética e zero em caligrafia. “Isto não é letra, isto é garrancho”, dizia Dona Clotilde, dando-me um peteleco na cabeça com seus dedos ossudos. Depois fui crescendo e cada vez era mais difícil escrever. Um dia passei pela casa de Dona Clotilde, que morava numa escadaria, e vi Dona Clotilde muito mais ossuda do que antes, debruçada à sua janela. Passaram-se os meses e passei por lá outra vez, mas não vi Dona Clotilde à janela. Disseram-me que ela morrera tuberculosa. Senti uma alegria embriagadora...

Aos 14 anos, descobri um objeto estranho em cima de uma mesa. Era a máquina de escrever. Experimentei. Na máquina, podia usar as duas mãos; podia ser canhoto a metade do tempo. Fui batendo as teclas, horas e horas, dias e dias, semanas e meses. Aprendi a escrever com quatro dedos. O meu maior prazer era ver as letras tão bem desenhadas que a máquina fazia, livrando-me para sempre dos meus garranchos. Abençoei o sábio que inventara a máquina de escrever, bem como o operário que a construíra. Meu plano, nessa época, era vir a ser escritor, mas pensei melhor e decidi tornar-me datilógrafo. 

Hoje, minha intimidade com a máquina é quase orgânica. Escrevendo, estou respirando; as teclas são dedos novos que desenvolvi. Descansa em paz, Dona Clotilde: a tua brutalidade não conseguiu destruir o menino.

jose-carlos-oliveira