Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 2/01/1980.

Em vez de fazer um exame de consciência, exercício a que me entrego no primeiro dia de cada ano, desta vez achei menos doloroso comparar as posições que tinha ontem — quer dizer, nos anos 70 — com as que tenho agora. Coincidirão? Folheio uma revista ilustrada e vou anotando:

O governo Geisel — Carrancudo, cabeça dura, o general. Eu o detestava. Agora reconheço que fez um belo trabalho acabando com a tortura em São Paulo e, no mesmo processo, liquidando o AI-5 e tornando mais respirável o país que habitamos. A contradição está em que ele foi um dos responsáveis indiretos pela tortura, ao cerrar fileiras com seus camaradas em torno da vigência do AI-5. Se, porém, estivesse em julgamento, seu governo e ele próprio seriam absolvidos graças a uma fórmula de Sartre: nesse tempo todo, como todos nós, teriam sido vítimas e cúmplices. Obviamente, excluo as vítimas reais, aquelas que sofreram o diabo nos porões da ditadura.

O terrorismo — Qual dos dois? Simpatizei durante certo tempo com as ações do MR-8. Acompanhei pasmo, sem tomar partido, as aventuras de Lamarca. No último ato da vida de Lamarca, me convenci de que ele lutara por uma ditadura de esquerda, incompatível com meus princípios (vá lá) de pequeno burguês aturdido. Mas o DOI-CODI era um punhal nas minhas costas e eu preferia qualquer solução, fosse qual fosse, desde que tivesse por objetivo nos livrar do terrorismo de Estado, não apenas semiclandestino, mas entrelaçado às atrocidades e corrupção do Esquadrão da Morte.

A anistia — Era intolerável viver com a certeza de que milhares de brasileiros erravam pelo mundo, sem pátria, sem futuro, sem passaporte. Os gloriosos verões na beira do mar me humilhavam, eu era um privilegiado; um omisso; um...

Os costumes — Sempre estive francamente do lado dos marginais e das minorias: hippies, desbundados, andróginos, contestadores. Acreditei e ainda acredito que a cooptação — até onde o regime se alonga — coisa é, detestável.

Religião — Se posso dizer assim, tornei-me menos ateu, quase-quase católico. Entendo que ser de esquerda sem ser totalitário é ser, de algum modo, católico. As outras confissões não entram em cogitação: a religião que me atrai é mesmo o catolicismo, minha infância, o chão que me falta sob os pés.

O Feminismo — Se fui um machão ciumento e dominador até os 30 anos, humildemente procurei dialogar com a nova mulher. Ainda acho que os homens estão confusos e elas também: creio que só a próxima geração (atualmente com 16 anos) alcançará a plena igualdade sem dilaceramento.

O Vietnam — Horror, horror e horror sem fim. E agora genocídio no Camboja, invasão do Laos e do Camboja por um Vietnam ultramilitarizado. Fora do alcance das ideologias, me sinto compelido a ter compaixão pela raça humana, que não toma jeito.

A China — Lamentei antes a morte de Chu En-Lai do que o grandioso passamento de Mao Tsé-Tung. Mas tanto Mao quanto Chu me encantavam. A China, a pobre China, orgulhosa em sua pobreza — eis um dos mais edificantes espetáculos do século.

Árabes e Judeus — Estou sempre do lado do povo judeu. E sempre do lado do povo palestino. As guerras dos governos árabes contra os governos judeus não tocam no problema fundamental: israelenses e palestinos devem coexistir. O terrorismo palestino me horroriza. Mas sou a favor da pátria palestina enquanto não abro mão do glorioso Estado de Israel. Aqui não estou sendo contraditório. Aprecio o movimento Peace Now de Israel — a facção que quer fazer as pazes. Não creio na sinceridade de Begin e creio na sinceridade de Sadat. Mas os povos não são os seus governos...

O Gulag — Ninguém me convence de que a vida na União Soviética possa ter algum encanto. Stalin nunca me enganou — mesmo porque de longa data me afeiçoei ao solitário e infortunado Trotsky. A invasão da Tchecoslováquia pelos seus “companheiros solidários” do Pacto de Varsóvia...Quanta hipocrisia e que brutalidade enorme! Cada vez que um escritor soviético é condenado aos trabalhos forçados ou internado na clínica pseudopsiquiátrica, mais me entristece pensar que Marx, no fundo do coração, querendo transformar o mundo, pretendia torná-lo melhor.

O Brasil — Não me canso de repetir esta banalidade, ela me consola: “É o único país que nós temos”. A fórmula de Madre Teresa de Calcutá, em minha opinião, devia constituir a premissa de um projeto de salvação nacional. “Todo mundo se preocupa com os pobres”, disse ela, “mas ninguém conversa com os pobres”. Olhar a pobreza de igual para igual é, no ato, tornar-se parte dela. A ideia de um “Brasil grande”, é doença mental de homens ricos e avarentos. O Brasil deveria medir-se por sua pobreza e não por sua riqueza. Ambas pesam na balança — não há dúvida — mas a miséria absoluta que nos rodeia, torna mesquinho e suicida qualquer veleidade de grande potência.

— Nada mais tenho a dizer...

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