Fonte: A companheira de viagem. Rio de Janeiro, Sabiá, 1965, pp. 151-155.

Mal iniciara seu discurso, o deputado embatucou:

— Senhor presidente: não sou daqueles que ...

O verbo ia para o singular ou para o plural? Tudo indicava o plural. No entanto, podia perfeitamente ser o singular:

— Não sou daqueles que...

Não sou daqueles que recusam... No plural soava melhor. Mas era preciso precaver-se contra essas armadilhas da linguagem — que recusa? — ele que tão facilmente caía nelas, e era logo massacrado com um aparte. Não sou daqueles que... Resolveu ganhar tempo:

— ... embora perfeitamente cônscio das minhas altas responsabilidades, como representante do povo nesta Casa, não sou ...

Daqueles que recusa, evidentemente. Como é que podia ter pensado em plural? Era um desses casos que os gramáticos registram nas suas questiúnculas de português: ia para o singular, não tinha dúvida. Idiotismo de linguagem, devia ser.

— ... daqueles que, em momentos de extrema gravidade, como este que o Brasil atravessa. .. 

Safara-se porque nem se lembrava do verbo que pretendia usar:

— Não sou daqueles que...

Daqueles que o quê? Qualquer coisa, contanto que atravessasse de uma vez essa traiçoeira pinguela gramatical em que sua oratória lamentavelmente se havia metido logo de saída. Mas a concordância? Qualquer verbo servia, desde que conjugado corretamente, no singular. Ou no plural:

— Não sou daqueles que, dizia eu — e é bom que se repita sempre, senhor presidente, para que possamos ser dignos da confiança em nós depositada ...

Intercalava orações e mais orações, voltando sempre ao ponto de partida, incapaz de se definir por esta ou aquela concordância. Ambas com aparência castiça. Ambas legítimas. Ambas gramaticalmente lídimas, segundo o vernáculo:

— Neste momento tão grave para os destinos da nossa nacionalidade.

Ambas legítimas? Não, não podia ser. Sabia bem que a expressão “daqueles que” era coisa já estudada e decidida por tudo quanto é gramaticoide por aí, qualquer um sabia que levava sempre o verbo ao plural:

— ... não sou daqueles que, conforme afirmava...

Ou ao singular? Há exceções, e aquela bem podia ser uma delas. Daqueles que. Não sou UM daqueles que. Um que recusa, daqueles que recusam. Ah! o verbo era recusar:

— Senhor presidente. Meus nobres colegas.

A concordância que fosse para o diabo. Intercalou mais uma oração e foi em frente com bravura, disposto a tudo, afirmando não ser daqueles que...

— Como?

Acolheu a interrupção com um suspiro de alívio:

— Não ouvi bem o aparte do nobre deputado.

Silêncio. Ninguém dera aparte nenhum.

— Vossa excelência, por obséquio, queira falar mais alto, que não ouvi bem — e apontava, agoniado, um dos deputados mais próximos.

— Eu? Mas eu não disse nada ...

— Terei o maior prazer em responder ao aparte do nobre colega. Qualquer aparte. O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde.

— Que é que você acha? — Cochichou um.

Acho que vai para o singular. 

— Pois eu não: para o plural, é lógico. 

O orador prosseguia na sua luta:

— Como afirmava no começo de meu discurso, senhor presidente....

Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim como é que é, me tira desta...

— Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.

— Apenas algumas palavras, senhor presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida pública....

E entrava por novos desvios:

— Muito embora... sabendo perfeitamente... os imperativos de minha consciência cívica... senhor presidente... e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que...

O presidente voltou a adverti-lo de que seu tempo se esgotara. Não havia mais por onde fugir:

— Senhor presidente, meus nobres colegas!

Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito e desfechou:

— Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.

Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.

fernando-sabino