Fonte: A companheira de viagem. Rio de Janeiro, Sabiá, 1965, pp. 38-40.

O filho mais novo não tem seis anos ainda, mas quis sair no carnaval fantasiado de mocinho, no que foi prontamente atendido. Mal sabia o pai que o império da lei era a paixão dos fortes, e que os brutos também amam para matar ou morrer: chapéu de cow-boy à cabeça, jaleco de couro, lenço ao pescoço e distintivo de xerife ao peito, com dois revólveres maiores do que ele às ilhargas, o vingador saiu batendo esporas pela rua no mais rigoroso estilo Gary Cooper, levado pela mão do pai. Andou pelo bairro, metido na multidão de foliões, mas sem ver nada nem achar graça em coisa nenhuma, por que sua missão era surpreender o bandido depois do assalto à diligência, para o duelo de titãs.

Foi na confeitaria que o bandido apareceu. O vingador sentara-se com o pai numa das mesas e em meio à confusão de cordões, serpentinas e confetes, perninhas balançando no ar e distraído de sua missão, tomava uma Coca-Cola com canudinho. Cometera, porém, o imperdoável descuido de sentar-se de costas para a porta, sem ao menos um espelho do qual pudesse controlar o movimento, para ser o primeiro a sacar o revólver quando chegasse o instante fatal. Ao erguer os olhos, deu com o facínora diante de si, a cara oculta até os olhos por um lenço preto. Antes que pudesse esboçar qualquer gesto de defesa, o bandido apontou-lhe o revólver, pum! pum! deu dois tiros com a boca e se escafedeu.

Apanhado de surpresa, pulou da cadeira, deixando entornar a Coca-Cola, e tentou ainda sacar dois revólveres, que se haviam engastalhado no coldre. E os seus davam tiro mesmo, de espoleta, não eram como os do outro, sem munição. Mas agora o bandoleiro já havia fugido, provavelmente pulando em seu cavalo e deixando a cidade a galope numa nuvem de poeira. O pai, distraído a observar um bloco de fantasiados lá na rua, espantou-se com o movimento:

— Que foi, meu filho?

— O bandido — choramingou o menino: — Me pegou à traição.... Isso não vale. Ele me matou, você não viu?

— Matou como? Você está vivo aí.

— Ora, papai — e o menino pôs-se francamente a chorar. O pai se compenetrou:

— Vi sim! Ele estava de preto, mascarado, te pegou à traição. Mas isso não fica assim. Você ainda pega ele.

— Ele me matou — e o menino foi para casa pela mão do pai, inconsolável.

No dia seguinte o pai deu sozinho uma volta pelo bairro até localizar o bandido: era um rapazinho de doze anos, todo animado, brincando no meio de uma roda. Chamou-o:

— Você ontem foi matar meu filho, não é? 

O rapazinho arregalou os olhos: 

— Matar seu filho?

— Ali na confeitaria: foi você mesmo, não adianta negar. Você estava com esse lenço preto aí no pescoço tapando a cara. Entrou lá e puxou o revólver, fez pum! pum! à traição, ele estava de costas, não te viu entrar.

— Não fiz por mal — balbuciou o rapazinho, já meio atemorizado: — Juro ao senhor, foi de brincadeira...

— É, mas para ele foi a sério. Agora você vai ter paciência, mas isso não fica assim não. Depois te pago um sorvete, tá?

E foi em casa buscar o filho. O cow-boyzinho veio andando meio ressabiado, olhando para os lados, temeroso de uma cilada: não estou gostando nada deste silêncio, diria certamente, entrando com cautela na cidade deserta, a caminho do saloon. Em verdade a rua ia animada e barulhenta, em plena celebração do carnaval. O garotinho se atropelava em meio à multidão de pernas, para acompanhar os passos determinados do pai. Instalaram-se afinal na confeitaria, como no dia anterior:

— Cuidado, que o bandido pode aparecer de uma hora para outra.

De súbito, o bandido pôs a cara mascarada na porta, começou a fazer gatimonhas, para atrair atenção.

— Olha ele ali, papai! — e o menino saltou da cadeira, sacando os dois revólveres ao mesmo tempo. O celerado procurou refugiar-se atrás das outras mesas, mas ele, implacável, fulminou-o com dois tiros, em certeira pontaria. O bandido só fez cambalear, dar alguns passos, vacilar sobre as pernas e finalmente tombar no chão, revirando os olhos.

— Bravos! — saudou o pai, abraçando o filho: — Estamos vingados. Vamos embora?

O menino, de novo vingador da sociedade, fez uma careta amarga, e olhou ao redor em desafio, enquanto repunha as armas no coldre. À saída, quis ainda chutar a cara do homem mau, morto a seus pés. O pai não deixou.

fernando-sabino