Os sports — O foot-ball

 

Fonte: João do Rio: crônica. Organização de Gabriela Beting, Carambaia, 2015, pp. 250-255. Publcada, originalmente, na Gazeta de Notícias, de 26/06/1905.

Areguap, guap! guap! 

Areguap, guap, guap! 

Hurrah! Hurrah! 

Parabotoo! 

Bangu!

Domingo no campo do Fluminense Foot-Ball Club. Os rapazes brincam cheios de entusiasmo, o campo estende-se igual e verde como uma larga mesa de bilhar. Do lado direito, os pedreiros trabalham ativamente na construção das galerias e arquibancadas que devem ficar prontas antes de 14 de julho. Moças de vestidos claros perfumam o ambiente com o seu encanto e cavalheiros sportsmen, de calça dobrada e sapatos grossos, olham o jogo com ar entendido, falando inglês. Todos falam inglês. Mesmo quando se fala português há para seis palavras nossas três britânicas. All right! O sol, que morre no céu de um azul hortênsia, doira todo o prado de uma luz flava, e os rapazes, uns de camisa riscada, outros de camisa sangue de boi, coloram violentamente o campo de notas rubras.

Teremos nós um novo sport em moda? Não há dúvida. Há 20 anos a mocidade carioca não sentia a necessidade urgente de desenvolver os músculos. Os meninos dedicavam-se ao sport de fazer versos maus. Eram todos poetas aos 15 anos e usavam lunetas de míope. De um único exercício se cuidava então: da capoeiragem. Mas a arte de revirar rabos de arraia e pregar cabeçadas era exclusiva de uma classe inferior. Depois a moda trouxe aos poucos os hábitos de terras, cultivadas temporariamente com delírio. Em 12 anos tivemos a nevrose da pelota basca, a hiperestesia da bicicleta, o entusiasmo das regatas e finalmente o foot-ball que se prepara agora para absorver todas as atenções. A mocidade, que só falava em pelota, a mocidade dos patins e do ciclismo nos velódromos, a mocidade admirável dos clubs de regatas fala só dos matchs de foot-ball, de goals, de shoots, numa algaravia técnica de que resultam palavras inteiramente novas no nosso vocabulário. E como a mocidade é irresistível, eu visito o campo, como amanhã todo o Rio de Janeiro o visitará. Um dos sócios, tão gentil como os outros, faz-me ver a instalação do Fluminense, a secretaria, as salas de banhos asfaltadas com chuveiros e duchas, duas — uma para cada partido, as salas de vestir, o bar, onde de pé, suando, os foot-ballistas bebem whisky and Caxambu gelado. Paira no ar a agitação das nevroses. Até os jogadores parecem esperar alguma coisa.

— Nós estamos preocupados, diz o meu guia. A esta hora disputa-se em São Paulo um match e ainda não recebemos um telegrama.

Pergunto qual a diretoria atual do Fluminense. 

— Presidente Francis Walter, um jovem inglês que ama o Brasil e tem sido a própria dedicação para o progresso do Club; vice-presidente Guilherme Guinle; secretários Carlos Sardinha e Américo de Castro; tesoureiros Luiz Borgerth e Raul Rocha e, no ground committee, Victor Etchegaray captain e o primeiro jogador do Rio, Oscar Cox, Mário Rocha, Félix Frias, Emílio Etchegaray.

— Era interessante saber as origens desse jogo no Rio, agora que o seu sucesso começa...

— Nada mais fácil. Como sabe, há na Inglaterra dois gêneros de foot-ball, o rugby e o association. Este último mais moderno é o que indubitavelmente tem tido maior acolhimento noutros países.

— É o adotado na América.

— Os americanos do norte são como os ingleses os melhores jogadores do foot-ball. Seguem-se em escala decrescente os dinamarqueses, os búlgaros, os holandeses, os franceses, os alemães e os belgas... Só na própria Inglaterra é que se pode ver como o povo adora esse jogo. Para assistir ao final da Taça Inglesa no Crystal Palace havia 130 mil pessoas! Desses entusiasmos só em New York no campo da universidade de Yale.... Aqui, a primeira tentativa para a adoção do foot-ball foi feita em 1897. Chegaram a mandar vir... uma bola! Mas a falta de um campo — mal que por muito tempo há de afligir os clubs cariocas — foi um grande empecilho. As tentativas sucederam-se sempre infrutíferas até que em 1901, um grupo de jogadores hoje núcleo do Fluminense, conseguiu, após inúmeros adiamentos, realizar o primeiro match a 22 de setembro no campo da Rio Cricket and Athletic Association em Icaraí. Os dous teams eram compostos, um de brasileiros outro de ingleses. O team brasileiro constava de C. Portella, W. Schuback, M. Frias, O. Cox, M. Vaegely, Victor Etchegaray, etc. Os ingleses jogavam de camisa branca, os brasileiros com as camisas de St. Georges, St. Augustin’s e St. Charles Colleges de Inglaterra e de Villa Longchamp da Suíça. Foi um sucesso. Nos domingos seguintes jogaram-se mais dois matchs. A 18 de outubro partiu para São Paulo um team composto de oito brasileiros e três ingleses. Jogaram-se dois matchs, ambos empates: 2-2 e 0-0. Ainda hoje os paulistas reconhecem o incremento que a ida desse team deu ao foot-ball paulistano. No ano seguinte, outro team foi a São Paulo jogar dois matchs, mas a sorte contrariou os cariocas obrigados a jogar em ambas as partidas com um jogador de menos. O resultado foi o Sport Club Internacional ganhar 3-0 e o Club Athletico Paulistano, 1-0. Nessa ocasião fundou-se o Fluminense Foot-Ball Club que, por assim dizer, está na ponta...

Esta frase popular o meu guia dissera a sorrir. Nós chegáramos ao balcão do bar, donde se divisava o jogo dos foot-ballistas. O entusiasmo crescia e em torno da bola amarela; era uma conflagração de dorsos rubros e riscados.

— Nessa mesma ocasião, continuou o informante, tirando o chapéu de palha em que se via na fita vermelha e verde o escudo do club, também se fundou o Rio Foot Club, que se desenvolveu após um match conosco em que vencemos por 8-0. Em fins de setembro, mandamos um forte team a São Paulo jogar três partidas. No primeiro empatamos com o S. C. Internacional, 0-0. No segundo o C. A. Paulistano foi batido por 2-1, e no terceiro, contra a expectativa geral, o S. Paulo Athletic Club foi também derrotado por 3-0. O extraordinário resultado animou os jogadores cariocas. Que aclamações quando nos retiramos do campo deixando derrotado o club campeão!

— Depois?

— Depois outro galo cantou. O C. A. P. veio ao Rio para derrotar o Fluminense por 3-0 contra 2-0, e quando lá fomos jogar contra os cinco clubs da Liga Paulista, obtivemos uma série de derrotas que ainda hoje doem aos cariocas. Em 1904, fundaram-se o Foot-Ball and Athletic Club e o Bangu Athletic Club, que já ocupam lugar saliente. Atualmente há uma infinidade de clubs que perecerão se não encontrarem o principal elemento que é o — campo. Os que têm campo preparado são o Rio Cricket and Athletic Club de Icaraí, Paissandu Cricket Club, o Bangu e o Fluminense. Por estes dias será fundada uma Liga destinada a servir e animar os clubs.

— O foot-ball talvez faça mal ao desenvolvimento das sociedades do remo?

— É natural. O foot-ball é um exercício que não pede os grandes esforços exigidos de uma guarnição de regatas nem tampouco requer o longo tempo de ensaio do rowing... O nosso primeiro team joga em S. Paulo agora três matchs. A 14 de julho chegará aqui o primeiro team do Paulistano e nesse dia, com as arquibancadas prontas, o Fluminense abrirá as suas portas ao público. Será decerto a inauguração oficial de mais um sport naturalizado.

Tínhamos descido, ladeando o campo. A bola amarela voava impelida pelos pés e pelas cabeças dos dous teams. As faces afogueadas, as mandíbulas inferiores avançando numa proeminência de esforço, os rapazes atiravam-se cheios de ardor para a vitória. De repente trilava um apito. Os bandos paravam. O juiz avançava, um dos rapazes soltava a bola e de novo os teams se entrelaçavam na ânsia de atirar a bola no campo alheio. 

Vi de perto os jovens jogadores. Em alguns o desenvolvimento muscular das tíbias é inacreditável. Faz a gente pensar sem querer num pontapé, num shoot como eles dizem. Esse pontapé, ou esse shoot, passará para o outro mundo com facilidade um homem forte.

O meu guia, porém, abandona-me. À porta estacara uma negra parelha de cavalos normandos e entrava no campo, com a face escanhoada e uma perfeita elegância brumeliana, o vice-presidente. O céu, já de todo sem sol, tinha no poente nuanças de nácar e de madrepérola. As sombras desciam lentamente e só a mocidade, indiferente à tristeza do ocaso, gritava no verde campo vasto o impetuoso prazer da vida.

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