“...saltou de paraquedas
caiu a letra O...”

Claro, o funcionalismo, hoje em dia, é, neste país, uma casta privilegiada. Dantes, dizia-se que era só o Exército. Hoje o funcionalismo goza de todas as vantagens, do militar, sem nenhum dos ônus que afetam o soldado. Salários os mais altos, férias, pensões, hospitais, sanatórios, auxilio-família, licença para tudo — tratamento de saúde, viagens de estudo, e até licenças de peregrinação — fora as licenças-prêmio seis meses de dez em dez anos; e é mister ser o pior funcionário do mundo, o mais relapso e faltoso, para perder a sua licença-prêmio.

Formou-se assim, nas grandes cidades, ou onde quer que se estenda o longo braço rico do governo federal, uma aristocracia de burocratas bem vestidos, bem morados, bem comidos, bem viajados, que educam filhos no estrangeiro — na Europa e na América —quando lá não se reeducam eles próprios e os cônjuges. Para se calcular como é alto o padrão de vida deles, basta compará-lo com o do funcionalismo das províncias pobres, que ainda ganham de acordo com os velhos padrões. Enquanto um funcionário federal, letra “O” (ou marca zero, como dizem as más línguas) ganham em torno de nove contos (sem penacho, pois os “O” de penacho, ou “quinquênio”, vão aí por 15 e mais) um juiz de direito no estado do Ceará recebe 2.800 cruzeiros mensais... o que não é, aqui, a paga de um contínuo. E há estados que esses ordenados ainda são menores; no Rio Grande do Norte, um juiz recebe menos de dois contos. Pelo menos era essa a situação lá, há dois anos atrás, quando me mandaram documentação a respeito. Uma professora, diretora de escola, com todas as gratificações correspondentes a 20 anos de serviço e à comissão, ganha um conto e 500. Que não ganhará uma datilógrafa e, pior, uma servente?

E o grave é que esses ordenados mínimos não representam uma injustiça remediável com um decreto: os governos não pagam mais porque não podem; pagando como pagam, os seus orçamentos já andam em ossos de minhoca.

E ao mesmo tempo, não se conclua, como pode parecer, que a gente está dizendo que os “maria candelária” daqui ganhem demais. Ganham direito; ganham bem, nada mais. O que acontece é que o padrão de vida e, portanto, de rendimento do brasileiro médio é tão baixo, que entre nós, quem ganha decentemente, ganha como príncipe. Vivemos da mão para a boca, não temos recursos de nada, não temos raiz econômica nenhuma.

A vida subiu, subiram os ordenados que podem ser aumentados por uma ordem do governo; mas não subiram, porque não têm com que subir, os ganhos de quem ganha o pão com esforço independente, ou os ordenados que dependem de orçamentos particulares, ou de pequenos orçamentos estaduais e municipais. E como ninguém pode viver sem ganhar o bastante para satisfazer as necessidades mais importantes, dá-se esse terrível êxodo de provincianos para a cidade grande, atraídos pela miragem dos belos ordenados na capital federal e enxotados pelo desequilíbrio impossível da vida no interior.

Nota: O assunto é tão grande que o resto fica para a semana que vem.

rachel-de-queiroz
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