Introdução

Linha de bonde, Rio de Janeiro-RJ, 1960. Foto de José Medeiros/ Instituto Moreira Salles.

A crônica não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz literatura também. Textos feitos para o momento e que, pela qualidade, vão ficar para sempre. Eis o breque deste livro. As cem crônicas e os 62 autores que transformaram um gênero, chamado ora de menor, ora de literatura de bermuda, num chorrilho interminável de grandes clássicos de referência de bons momentos em nossa língua.

Salve! Viva! O monumento de nação redigido em cada linha de Dom Casmurro e Grande sertão ― veredas, mas preste atenção agora que Rubem Braga vai começar, assim como quem não quer nada, a sua “Aula de inglês”. É uma crônica de fala mansa, sem aparentar pompa ou qualquer circunstância, como é típico da espécie, mas está entre os cem mais de qualquer coisa escrita neste país. Temos o samba, a prontidão e podemos colocar a crônica entre o que Noel Rosa listou como outras bossas. Os ingleses talvez carreguem mais no sarcasmo, os franceses talvez apostem na erudição. Problema deles. A crônica brasileira tem uma cara própria, leve, bem-humorada, amorosa, com o pé na rua. Quase 150 anos depois de instaurada nos jornais, ela apresenta uma espetacular capacidade de se reinventar e se comunicar com o leitor. Literatura é tudo aquilo que permanece. É o caso das crônicas que vêm a seguir.

Se levar a palavra ao pé da letra e destrinchar o radical grego chrono, tempo, você vai chegar à aborrecida definição que o dicionário dá para crônica: “Compilação de fatos históricos apresentados segundo a ordem de sucessão no tempo”. Isso pode até ter acontecido, e creem alguns que a carta de Pero Vaz de Caminha foi nossa primeira matéria no gênero. No início da história que nos interessa, a crônica que surge na relação com a imprensa, os primeiros autores recebiam como missão escrever um relato dos fatos da semana. Eram os chamados “folhetins”. Aos poucos a tarefa foi entregue a penas geniais como a de Machado de Assis, na virada para o século XX, e o gênero, sem pigarrear, sem subir à tribuna, ganhou cara própria. Passou a refletir com estilo, refinamento literário aparentemente despretensioso, o que ia pelos costumes sociais. Narrava o comportamento das tribos urbanas, o crescimento das cidades, o duelo dos amantes e tudo mais que se mexesse no caminhar da espécie sobre esse vale de lágrimas. Eis a crônica moderna. Ela ocupa hoje pelo menos meia página diária em todos os grandes jornais brasileiros e, quando transformada em livro, como no caso das produções de Veríssimo e Arnaldo Jabor, fica durante dezenas de semanas nas listas dos mais vendidos. É, sem dúvida, um fenômeno de aceitação popular, o contato mais cotidiano do brasileiro com os grandes autores da língua.

O jornal Espelho Diamantino produziu a partir de 1828 a pré-história da crônica brasileira ao manter uma seção fixa para registrar os usos e costumes do período. O padre Lopes Gama em O Carapuceiro, em 1832, e Martins Pena, no Correio da Moda, em 1839, confirmaram a necessidade editorial de registrar, comentar com verve, como desse na telha, o que se via e ouvia pelas ruas. Mas foi a partir de janeiro de 1854, quando José de Alencar publicou o primeiro folhetim da série “Ao correr da pena”, no Correio Mercantil, que o gênero começou a ficar com o jeitão atual. Alencar, um dos fundadores da pátria, comentava com graça e leveza os acontecimentos da semana — a primeira corrida no Jockey Club, a missa do galo na Catedral — e fazia o casamento definitivo entre literatura e jornalismo. Em 1861, Joaquim Manuel de Macedo, autor do clássico A Moreninha, daria contribuição luxuosa ao inventar um caminho perseguido ainda hoje pelos cronistas: o flâneur, o andarilho que comenta o que vê pelas calçadas. No Jornal do Comércio, em 44 textos sob o título “Um passeio”, ele simplesmente flanava pelo Rio de Janeiro. Zé e Joaquim deixavam o gênero com pistas a serem percorridas pela multidão de cronistas dos séculos seguintes. Eles apostavam, como cláusula primeira de sobrevivência, no abuso da subjetividade e na descontração do texto para criar peças que funcionam como oásis de respiração e bom gosto no meio das crises e tragédias de um jornal.

Segundo Antônio Cândido, era o início de uma raça de “cães vadios, livres farejadores do cotidiano, batizados com outro nome vale-tudo: crônica”.

O fato escolhido como tema era desde o início um detalhe de somenos, uma desimportância qualquer, um pretexto reles para que o escritor, esse “vira-lata” talentoso, viajasse a pena e desse uma geral na humanidade. Numa das crônicas de Machado de Assis escolhida para este livro, ele fala da crise financeira de agosto de 1896, uma flutuação cambial que desvaloriza a moeda brasileira. Em nenhum momento usa a auto-suficiência de um analista econômico. Não discursa. Não reverbera empáfia de doutor. Machado valoriza o comportamento, como a desvalorização financeira transborda para as pessoas nas ruas e, com humor, vai buscar inspiração nas pombas que bicam a cabeça do apóstolo São João na igreja da Santa Cruz dos Militares. Ele não tem compromisso em informar o que está acontecendo. Está no jornal, mas não é um espaço de notícia. Abusa da liberdade, eis a palavra mágica, e isso nas mãos dos craques faz o charme da crônica brasileira.

Machado, autor de três textos nesta antologia, queria distância da solenidade dos grandes acontecimentos. Apostava no micro, declarava-se autor em que o estilo grave não cabia — era apenas “um escriba de coisas miúdas”. Ele próprio avança mais um pouco na definição do que é um cronista:

“Nasci com certo orgulho, que já agora há de morrer comigo. Não gosto que os fatos nem os homens se me imponham por si mesmos. Tenho horror a toda superioridade. Eu é que os hei de enfeitar com dois ou três adjetivos, uma reminiscência clássica, e os mais galões do estilo. Os fatos, eu é que os hei de declarar transcendentes; os homens, eu é que os hei de aclamar extraordinários”.

Desencaixotando Machado: a crônica está no detalhe, no mínimo, no escondido, naquilo que aos olhos comuns pode não significar nada, mas, puxa uma palavra daqui “uma reminiscência clássica” dali, e coloca-se de pé uma obra delicada de observação absolutamente pessoal. O borogodó está no que o cronista escolhe como tema. Nada de engomar o verbo. É um rabo de arraia na pompa literária. Um “falar à fresca”, como o bruxo do Cosme Velho pedia. Muitas vezes uma crônica brilha, gloriosa, mesmo que o autor esteja declarando, como é comum, a falta de qualquer assunto. Não vale o que está escrito, mas como está escrito. Manuel Bandeira dizia que Rubem Braga era sempre bom, mas “quando não tem assunto então é ótimo”. Ou seja, receita de crônica é uma obra particular, onde cabem quase todos os ingredientes — mas, por favor, sempre com muito molho. As de Clarice Lispector vêm regadas de azeites da alma. As de Lima Barreto trazem no tempero alguma erva colhida num quintal suburbano.

Não faltam bons chefs e receitas nessa cozinha.

Os exemplos reunidos neste livro são clássicos elegantes desse modo particular de escrever que se rotula como crônica, uma iguaria de sal regado a gosto, onde são valorizadas todas as veleidades idiossincráticas — menos palavrões desse jaez. Afetação zero. Eles posam no máximo um jeitão despretensioso, próximo do coloquialismo dos papos de botequim, como costuma fazer Aldir Blanc, ou da conversa jogada fora numa praça de Copacabana, como dissimula João Antônio. Vale tudo, menos ser chato. A princípio essas crônicas tinham compromisso apenas com o efêmero, encher meia página de jornal, manter ocupados os olhos do leitor, e serem esquecidas imediatamente. Deveriam ter a durabilidade de uma notícia. Não foi possível. João Ubaldo Ribeiro, Humberto de Campos, Carlos Heitor Cony não conseguiriam. Transportadas para a página dos livros, as nossas melhores crônicas mantêm surpreendente vitalidade e frescor.

As crônicas deste volume foram escolhidas pelo curador no uso da sua subjetividade máxima, como convém ao gênero, e desafiam a idéia de apenas narrar seu tempo. Elas acabaram indo aonde ninguém poderia imaginar. Eternas. Peças de referência com representantes de primeira ordem. João do Rio, cronista flâneur que cruzou os bairros e morros cariocas atrás de personagens, parecia, no início dos anos 1900, próximo do novo jornalismo que Gay Talese faria ao final do século, percorrendo Nova York atrás de tipos curiosos. João misturou tudo num grande caldeirão. Repórter? Cronista? Contista? Ele já era a geração posterior a Machado e Alencar, de uma turma de literatos que se valia da profissionalização da imprensa no Rio — Bilac, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Benjamin Costallat — e vivia com os ganhos da publicação de suas palavrinhas nos jornais. A turma tinha um olho na imortalidade da Academia Brasileira de Letras e outro no relógio para cumprir o prazo dado pelo editor do jornal. Navegando com talento entre o acabamento literário inerente a cada um e a atualidade jornalística, o grupo deixou retratos de definição exemplar, tão nítidos quanto os de Augusto Malta e Marc Ferrez, dos principais aspectos da modernização dos costumes no Rio de Janeiro no início do século XX.

Uma crônica, como se vê, e nas próximas páginas há uma centena de exemplos deliciosos, serve para muita coisa. Vinicius de Moraes usou a prosa poética para cantar as eternas namoradas, enquanto Danuza Leão tinha um flash do que era felicidade vendo em Paris a cena do casal que compra uma echarpe. Otto Lara Resende narrou o descaso pelas notícias do mundo diante do fato maior de que seu gatinho Zano sumiu, e Carlos Heitor Cony pranteou Mila, sua cachorrinha morta. Roberto Drummond investigou os mistérios do imaginário de Belo Horizonte e André Sant’Anna narrou suas contradições, entre o adoro e o detesto, a respeito de São Paulo.

Une todos esses textos a voz nítida de autores que abusam da primeira pessoa, do comentário e da liberdade de adotarem um idioma ora poético, ora jornalístico, ora irônico, ora perplexo, quase sempre bem-humorado. Parecem textos ligeiros, simples e superficiais, tamanha a facilidade de leitura. São pequenas obras-primas de emoção baseadas nos espantos e alegrias, decepções e surpresas do cotidiano. A namorada acordou ao lado e a cena revelava um espetáculo deslumbrante? Xico Sá, da nova geração que usa a internet para cultivar o gênero, não teve dúvida. Era o início de uma crônica. De início, esses textos que você vai ler não tiravam qualquer onda de se perpetuarem nos almanaques das obras imortais, como é a vontade dos que escrevem um romance. Podiam ser esquecidos no dia seguinte e ninguém ficaria aborrecido com isso. Mas o que fazer se pela qualidade, pelo frescor, pelo tom amigo de conversarem com as gerações seguintes, essas crônicas transcenderam a edição do jornal, continuam atuais e fazendo bonito diante da escrita que evolui?

A base de estilo plantada por Alencar e Machado passou pelo frenético andarilho de João do Rio-e-seus-blue-caps-da-belle-époque. Em seguida ganhou o formato que ainda se lê hoje com a aparição dos escritores-roqueiros de 22. Os modernistas radicalizaram em suas propostas, em romances e poesias, o que já havia nas crônicas desde o início: a vontade de deixar a língua “à fresca”, coloquial, sem medo até (por que não?) de fazer piada. Valorizavam as pequenas cenas e, mesmo em assuntos sérios, sempre passavam ao largo de qualquer pronunciamento tingido pela seriedade. Oswald e Mario de Andrade, mais Alcântara Machado, Manuel Bandeira, todos foram cronistas de jornal. Deixaram o gênero na medida e nada mais, enxuto de beletrismos, orgulhoso de suas bermudas, para que a partir dos anos 1930 entrasse em cena o texto fundamental de Rubem Braga. Ele seria o único grande escritor brasileiro a traçar toda sua obra nos limites da crônica — embora suas crônicas alargassem todos os limites do texto e muitos vissem nelas até um jeito enviesado de fazer poesia.

“Braga é o estilista cuja melhor performance ocorre sempre por escassez de assunto”, escreveu Manuel Bandeira. “Aí começa ele com o puxa-puxa, em que espreme na crônica as gotas de certa inefável poesia que é só dele. Será este o segredo de Braga: pôr nas suas crônicas o melhor da poesia que Deus lhe deu? Braga, poeta sem oficina montada e que faz poema uma vez na vida e outra na morte, descarrega os seus bálsamos e os seus venenos na crônica diária”.

O capixaba Rubem Braga, com o marco de sua “Aula de inglês”, de 1944, deu o acabamento definitivo do que seria a boa crônica brasileira — inspirado numa cena de total banalidade, o artista a transforma num monumento à inteligência e ao bom gosto. Tem humor, tem mergulho sutil na alma dos personagens, tem relato subjetivo, tem uma tremenda bossa.

Uma propaganda dos anos 1950 vendia uma toalha de plástico dizendo “parece linho, mas é Linholene”. Escrever crônicas, principalmente as melhores, parece dos exercícios mais simples. O verbo não posa empáfia, a semântica joga com as palavras curtas, de uso comum, e os personagens não vieram do fabulário grego nem das estátuas romanas, mas de alguma esquina do bairro. Parece simples, parece Linholene, mas é linho puro. O crítico Antônio Cândido, que classificava a “persistência da crônica” como “um fenômeno interessante da literatura brasileira”, viu que havia caroço sofisticado por baixo do angu de Braga e da maravilhosa geração dos anos 1950:

“Tanto em Drummond quanto nele (Braga) observamos um traço que não é raro na configuração da moderna crônica brasileira: no estilo, a confluência de uma tradição, digamos clássica, com a prosa modernista. Essa fórmula foi bem manipulada em Minas (onde Rubem Braga viveu alguns anos decisivos da vida); e dela se beneficiaram os que surgiram nos anos 40 e 50, como Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. É como se (imaginemos) a linguagem seca e límpida de Manuel Bandeira, coloquial e corretíssima, se misturasse ao ritmo falado de Mário de Andrade, com uma pitada do arcaísmo programado dos mineiros”.

A impressionante coleção de grifes literárias escrevendo nos jornais e revistas dos anos 1950 e 1960 ajudou a consolidar a crônica como o gênero literário mais próximo do brasileiro. Muitos leitores se aventuraram a voos mais profundos a partir do gosto que tomaram pelas páginas de Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos na revista Manchete. No jornal Última Hora, revezavam-se os estilos de Antônio Maria, romântico, e Stanislaw Ponte Preta, humor escrachado. No Correio da Manhã, no final dos anos 1950, estava Drummond; no Jornal do Brasil, no final dos 60, Clarice Lispector. Era uma turma de respeito ensinando o brasileiro a ler e, pela falsa simplicidade da coisa, a tentar escrever. Se Bandeira disse em poesia que o coelhinho da índia tinha sido sua primeira namorada, milhões de brasileiros poderiam repetir o mesmo em relação à crônica. Ela é a primeiríssima paixão pelas letras, através dos jornais, de um povo com pouco acesso aos livros.

Este livro tomou a liberdade de dividir a história das grandes crônicas por meio de blocos cronológicos. Poderia ter sido por intermédio dos temas mais recorrentes ao gênero como “O humor”, “A mulher”, “As cidades”, “Os costumes”, “As relações amorosas”, “Os andarilhos”. A divisão por seções pareceu mais confortável e capaz de facilitar o manuseio do livro. Ao mesmo tempo em que o leitor acompanha, didaticamente, o aparecimento em cena das sucessivas gerações de autores, curte a evolução dos novos modos na cena brasileira. Da máquina de costura industrial esbugalhando os olhos de José de Alencar ao internético Tutty Vasques, o avanço tecnológico fica mais lógico narrado década a década. Não percam, nos anos 1950, a máquina de fazer laranja de Fernando Sabino.

Com a ordem cronológica saboreia-se também, com mais nitidez, o que cada geração vai fazendo para modificar o jeito de escrever, navegando-se da pontuação rigorosa de Machado até os imensos blocos, costurados apenas com vírgulas, de André Sant’Anna.

Das cartomantes aconselhando amantes desgovernadas, a personagem da crônica de Olavo Bilac, até as mulheres amorosamente emancipadas do ano 2000, as heroínas de Marcelo Rubens Paiva — a evolução dos costumes ganha facetas mais divertidas de se acompanhar quando obedecida a ordem cronológica de suas aparições.

Lamenta-se que, por dificuldades relativas à cessão de direitos autorais, crônicas de Manuel Bandeira e Cecília Meireles não possam fazer parte deste volume. Bandeira participaria com três textos: “A fêmea do cupim”, “O enterro de Sinhô” e “A trinca do Curvelo”. Cecília compareceria com a seqüência das três viagens imaginárias que fez à sua paradisíaca Ilha do Nanja. Seriam escolhas clássicas em meio a uma lista que, de resto, ao mesmo tempo em que reconhece outros títulos emblemáticos e inevitáveis, aposta também em escolhas pouco ortodoxas. Há novos autores, como Antonio Prata, recém-iniciados na tradição, num aceno de que o futuro da crônica está garantido. As aproximações com gêneros vizinhos, como a prosa poética escolhida num dos exemplos de Vinicius de Moraes, ou o conto, no caso do texto de Lygia Fagundes Telles, também procuram provocar e mostrar a permeabilidade da crônica. Definitivamente, e eis uma de suas graças, ela dialoga sem preconceitos com tudo que lhe vai ao redor.

Seria um perfil o que escreveu Machado de Assis sobre a morte do livreiro Garnier?

Seria uma reportagem a de João do Rio sobre o mendigo original?

Seria uma simples carta de amigos o relato de João Paulo Cuenca sobre como vai sua cidade?

Os leitores não perguntam nada. Cada vez mais apaixonados, leem tudo.

A escolha das cem melhores crônicas, ao invés de evitar essas interrogações, aproximou-se delas para mostrar como são tênues, e desprezíveis, esses limites literários. Mas tudo sem academicismos, que a boa crônica não leva um papo desses a sério. Se é aguda, não é crônica, definiu Rubem Braga. Tudo sem culto de qualquer aristocracia, que ela nasceu plebeia, embrulhada em papel-jornal e com um editor gritando “Olha o prazo do fechamento, dona Rachel de Queiroz”. Acima de tudo sem a camisa de força teórica que divide o mundo em abstrações do tipo literatura maior e menor.

Em que nicho se encaixa “O medo da eternidade”, de Clarice Lispector, um recorte na angústia humana através da iniciação de uma adolescente no rito da degustação da... goma de mascar?

“Salve o prazer”, eis um dístico possível para essa bandeira que aqui se desfralda.

Ao escrever do exílio para o Pasquim, Caetano Veloso talvez não tivesse rotulado como crônica o delirante texto sobre “a ipanemia”, mas leia só e veja se ele não tem, na manha da liberdade autoral, na enunciação do seu tempo, na leveza das linhas, todas as características da coisa. É preciso estar atento e forte. Não é um artigo, não é um ensaio, não é uma resenha — mas atenção para o refrão. É o texto com charme, que toma todas as liberdades. Coisa nossa.

“É o sujeito se expondo”, diz Carlos Heitor Cony, tentando também classificar o espírito do que seria essa coisa. “O personagem único da crônica é a primeira pessoa do singular”.

Há quem diga caber neste balaio tudo aquilo que, no jornal, se coloca entre fios gráficos e em cima escreve-se “Crônica”. É a fusão dos gêneros. Misturar as artes do espírito sensível com os fatos da atualidade, mesmo que seja aquela realidade passando embaixo apenas da sua janela. Bate-se no liquidificador das referências pessoais, e serve-se ao leitor tentando ampliar o sentido daquela banalidade. A objetividade de Sabino, o lirismo de Braga, a perspectiva dilacerada de Caio Fernando de Abreu. Todos cronistas, todos cultores da excelência de estilo, aquilo que dá transcendência e inclui seus textos entre os melhores da literatura nacional.

Aqui estão cem exemplos, da pontinha, dessa saga de quase 150 anos — mas você fique à vontade, vista a bermuda, e faça sua lista com outras provocações. É como escalar a seleção brasileira. Cada um tem a sua, com os melhores craques e estilos de jogo. No início de 1954, Marques Rebelo enfileirou pequenos drops, meio poéticos, meio pílulas de sabedoria, no seu espaço na Última Hora e deixa claro que é possível fazer em cinco linhas — como Drummond fez em quatro capítulos no caso da bolsa perdida no ônibus — a velha, boa e reconhecível crônica.

Acima de tudo, pairou sobre a escolha destes textos a avaliação de qualidade e a capacidade de terem sobrevivido aos tempos, sem rodapés exaustivos, e estarem ainda em permanente estado de letrinhas que flutuam como se nuvens fossem. Era uma turma que pegava leve. Antônio Maria, 110 quilos, na luta de boxe das palavras era peso pluma. O resto é ao gosto deste freguês que assina, sempre sob a supervisão carinhosa da editora Isa Pessoa, a quem agradece a trabalheira de durante um ano não ter lido outra coisa senão crônicas, graças a Deus, muitas crônicas. Foi um grande prazer que agora, se espera, é do leitor. Aqui e ali, em meio aos mestres do gênero, como Elsie Lessa e Carlinhos Oliveira, aparições especiais de inesperados Graciliano Ramos e Chico Buarque. Todos cronistas por alguns dias apenas, mas, como em tudo mais que fizeram, exímios também na arte de espargir sobre a nossa sensibilidade o perfume suave contido no pequeno frasco da crônica.

*As cem melhores crônicas. Organização e introdução de Joaquim Ferreira dos Santos. Objetiva, 2007.

**Joaquim Ferreira dos Santos é carioca, jornalista e escreve às segundas-feiras no jornal O Globo. É autor de vários livros, entre eles Feliz 1958, o ano que não devia acabar e as biografias de Leila Diniz (Uma revolução na praia), Antônio Maria (Um homem chamado Maria) e Zózimo Barrozo do Amaral (Enquanto houver champanhe, há esperança). Suas crônicas foram reunidas nos livros Em busca do borogodó perdido, Minhas amigas e O que as mulheres procuram na bolsa.